terça-feira, julho 31, 2007

Estudos para uma bailadora andaluza


Dir-se-ia, quando aparece

dançando por siguiriyas,

que com a imagem do fogo

inteira se identifica.


Todos os gestos do fogo

que então possui dir-se-ia:

gestos das folhas do fogo,

de seu cabelo, sua língua;

gestos do corpo do fogo,

de sua carne em agonia,

carne de fogo, só nervos,

carne toda em carne viva.


Então, o caráter do fogo

nela também se adivinha:

mesmo gosto dos extremos,

de natureza faminta,

gosto de chegar ao fim

do que dele se aproxima,

gosto de chegar-se ao fim,

de atingir a própria cinza.


Porém a imagem do fogo

é num ponto desmentida:

que o fogo não é capaz

como ela é, nas siguiriyas,

de arrancar-se de si mesmo

numa primeira faísca,

nessa que, quando ela quer,

vem e acende-a fibra a fibra,

que somente ela é capaz

de acender-se estando fria,

de incendiar-se com nada,

de incendiar-se sozinha.


Subida ao dorso da dança

(vai carregada ou a carrega?)

é impossível se dizer

se é a cavaleira ou a égua.


Ela tem na sua dança

toda a energia retesa

e todo o nervo de quando

algum cavalo se encrespa.


Isto é: tanto a tensão

de quem vai montado em sela,

de quem monta um animal

e só a custo o debela,

como a tensão do animal

dominado sob a rédea,

que ressente ser mandado

e obedecendo protesta.


Então, como declarar

se ela é égua ou cavaleira:

há uma tal conformidade

entre o que é animal e é ela,

entre a parte que domina

e a parte que se rebela,

entre o que nela cavalga

e o que é cavalgado nela,

que o melhor será dizer

de ambas, cavaleira e égua,

que são de uma mesma coisa

e que um só nervo as inerva,

e que é impossível traçar

nenhuma linha fronteira

entre ela e a montaria:

ela é a égua e a cavaleira.


Quando está taconeando

a cabeça, atenta, inclina,

como se buscasse ouvir

alguma voz indistinta.


Há nessa atenção curvada

muito de telegrafista,

atento para não perder

a mensagem transmitida.


Mas o que faz duvidar

possa ser telegrafia

aquelas respostas que

suas pernas pronunciam

é que a mensagem de quem

lá do outro lado da linha

ela responde tão séria

nos passa despercebida.


Mas depois já não há dúvida:

é mesmo telegrafia:

mesmo que não se perceba

a mensagem recebida,

se vem de um ponto no fundo

do tablado ou de sua vida,

se a linguagem do diálogo

é em código ou ostensiva,

já não cabe duvidar:

deve ser telegrafia:

basta escutar a dicção

tão morse e tão desflorida,

linear, numa só corda,

em ponto e traço, concisa,

a dicção em preto e branco


Ela não pisa na terra

como quem a propicia

para que lhe seja leve

quando se enterre, num dia.


Ela a trata com a dura

e muscular energia

do camponês que cavando

sabe que a terra amacia.


Do camponês de quem tem

sotaque andaluz caipira

e o tornozelo robusto

que mais se planta que pisa.


Assim, em vez dessa ave

assexuada e mofina,

coisa a que parece sempre

aspirar a bailarina,

esta se quer uma árvore

firme na terra, nativa,

que não quer negar a terra

nem, como ave, fugi-la.


Árvore que estima a terra

de que se sabe família

e por isso trata a terra

com tanta dureza íntima.


Mais: que ao se saber da terra

não só na terra se afinca

pelos troncos dessas pernas

fortes, terrenas, maciças,

mas se orgulha de ser terra

e dela se reafirma,

batendo-a enquanto dança,

para vencer quem duvida.


Sua dança sempre acaba

igual como começa,

tal esses livros de iguais

coberta e contra-coberta:

com a mesma posição

como que talhada em pedra:

um momento está estátua,

desafiante, à espera.


Mas se essas duas estátuas

mesma atitude observam,

aquilo que desafiam

parece coisas diversas.


A primeira das estátuas

que ela é, quando começa,

parece desafiar

alguma presença interna

que no fundo dela própria,

fluindo, informe e sem regra,

por sua vez a desafia

a ver quem é que a modela.


Enquanto a estátua final,

por igual que ela pareça,

que ela é, quando um estilo

já impôs à íntima presa,

parece mais desafio

a quem está na assistência,

como para indagar quem

a mesma façanha tenta.


O livro de sua dança

capas iguais o encerram:

com a figura desafiante

de suas estátuas acesas.


Na sua dança se assiste

como ao processo da espiga:

verde, envolvida de palha;

madura, quase despida.


Parece que sua dança

ao ser dançada, à medida

que avança, a vai despojando

da folhagem que a vestia.


Não só da vegetação

de que ela dança vestida

(saias folhudas e crespas

do que no Brasil é chita)

mas também dessa outra flora

a que seus braços dão vida,

densa floresta de gestos

a que dão vida a agonia.


Na verdade, embora tudo

aquilo que ela leva em cima,

embora, de fato, sempre,

continui nela a vesti-la,

parece que vai perdendo

a opacidade que tinha

e, como a palha que seca,

vai aos poucos entreabrindo-a.


Ou então é que essa folhagem

vai ficando impercebida:

porque terminada a dança

embora a roupa persista,

a imagem que a memória

conservará em sua vista

é a espiga, nua e espigada,

rompente e esbelta, em espiga.


(MELO NETO, João Cabral de 1986, p. 127)

terça-feira, julho 17, 2007

Blog associado.

Criei ontem um blog associado, com comentários livres. Abro com um texto de Thomas Bernhard, que deu nome à casa. Quem quiser publicar neste blog, mande o texto pro e-mail:

shoematecreativefeatures@hotmail.com


Link do blog:

http://thomaseosdemonios.blogspot.com/

segunda-feira, julho 16, 2007

A hora de dizer não.


Não preciso de muito espaço, apenas meu metro quadrado.

Metáfora, é claro.

Mas, sim, tenho, todos temos; um metro quadrado, que é nosso espaço, onde estão traçados nossos limites.

Sou craque em permitir a invasão desse meu metrinho quadrado.

O outro dá um passinho, ops!; mais um, upa!; mais unzinho, epa!; tá lá, só me sobra um centímetro quadrado aonde eu me espremo pro outro se esticar.

Acabou.

Não dá mais.

Dizer "não" é uma medida disciplinar, reguladora.

Saudável.

Faz bem ao outro, preserva as relações.

Recentemente, tenho dito não ao primeiro sinal de invasão. E posto os folgados, os abusos antigos, pra fora.

No meu metro quadrado só cabe um: eu.

Eu cá no meu, o outro lá no seu, e a gente vai se entendendo assim.

Como diz a sabedoria popular (ênfase em "sabedoria"):

"Eu não vou na sua casa,
Pra você não vir na minha,
Você tem a boca grande,
Vai comer minha farinha."

Ass: Shoemate (traçando fronteiras!)

quinta-feira, julho 12, 2007

Para o alto e avante!


Todo mundo tem morcegos no sótão. Alguns chamam de esqueleto no armário, outros, de histórias mal-resolvidas.

Eu chamo de morcegos no sótão.

Vivem no escuro.

São feios, cegos, cabeludos, roubam sangue e transmitem raiva: a definição exata de tudo aquilo que a gente esconde bem no escondido, pra não ter que mexer, e rezando pra morrer antes de tudo vir à tona.

Meus morcegos são emocionais. E de vez em quando, dão uma flapeada pelo sótão, só pra dizer que estão lá...

Já há alguns anos, quando finalmente me convenci que tinha que crescer e guardar os meus sweet seventeen na memória, comecei um processo de limpeza do sótão. (Não se enganem, é ingrato, não termina nunca!)

A gente começa pelos maiores, os mais aparentes.

Mãe de Freud, infância (super-estimada em sua nostalgia, subestimada em sua violência emocional), adolescência, claustrofobia, a tendência inexorável às profundezas da depressão.

Depois, precisando, pede ajuda aos desratizadores: terapia, fluoxetina, mãe!, amigos.

Funciona.

O meu sótão tem um hall de entrada que é uma beleza! Parece até o foyer do Sheraton!

Mas é mentira.

Sobram alguns morcegos. Pequenos. Sub-reptícios. Dolorosos.

Ficam escondidos nos cantinhos mais remotos, só esperando que a gente passe por lá. Voam no nosso pescoço e sugam toda a energia de vida que temos.

Estou no meio de uma limpeza das boas. Acabei de encontrar um ninho, cheio de morceguinhos pendurados de cabeça pra baixo. Morcegos, aliás, que não são só meus; são divididos, compartilhados.

Morcegos que vivem aqui dentro e acolá dentro também.

Talvez seja um dos processos de desinfecção mais difíceis que encontrei na vidinha.

O que me leva adiante; ao alto e avante; é a certeza férrea de que ficaremos bem.

Depois de tudo, ficaremos todos bem.

terça-feira, julho 03, 2007

"A fronte praecipitium, a tergo lupi." *


Viver causa danos irreparáveis.

A vida, como ela é e deveria ser vivida, é incompatível com os nossos valores.

Deveriámos ser famintos, sorver, tragar, devorar a vida, todos os dias, a todo segundo. Não podemos. Há os outros.

Deveríamos ir sempre, sempre adiante, chegar lá, onde quer que seja nosso lá, sem parar, sem respirar. Não dá. Existem outros.

A vida é incompatível com a vida.

Ainda ontem afirmei que só era possível manter relacionamentos humanos longos e estáveis excluindo deles a verdade.

A verdade não nos é muito útil.

Precisamos da mentira amorosa, da mentira sanitária, aquela que disfarça a nossa vida em meia-vida social.

Aquela que esconde todos os ódios, invejas, ganâncias, mesquinharias, crueldades que sentimos e queremos infligir àqueles que mais amamos.

Viver como queremos é tarefa olímpica, idealizada, romântica, pura.
Viver como devemos é para os baixos, para o desfile bestiário onde realmente estamos.

Viver inteiramente é para os reles.


PS: A imagem de abertura do post é o quadro "Saturno" do pintor espanhol Francisco de Goya (1746-1828)

* Pela frente um precipício, por trás os lobos."